28 novembro, 2006

A Aventura de um acensorista

Antônio F. trabalhava num destes prédios públicos de arquitetura antiquada no centro da capital. Exercia uma função cada vez mais rara, era ascensorista, de uniforme com corda atravessada, luvas, quepe e tudo mais. O elevador antigo exigia trabalho, e só alguém com a experiência e a paciência de Antônio podia exercer aquela função. E além do mais tinha de lidar diariamente com as caras fechadas dos funcionários que entravam e saiam do seu elevador. Não muito diferente eram as outras pessoas que vinham ao departamento sempre buscando a resolução de problemas que nunca eram resolvidos.


Já tinha uma idade avançada para pensar numa mudança de carreira, nos seus planos próximos estava sim uma aposentadoria. Passaria a viver tranqüilamente, pescando na beira do rio da cidadezinha onde nasceu. Há muito não havia grandes emoções no seu trabalho, o qual fazia mecanicamente. Ao chegar tirava do armário o uniforme grená e dourado, trocava a roupa ordinária que vestia desde casa, botando depois cada peça no armário com cuidado para não amarrotar. Sentava no seu banquinho e geralmente esperava uns 15 minutos, sozinho naquele cubículo, até o primeiro grupo chegar para o trabalho diário, eram uns subordinados que trabalhavam no sexto andar. Os mais importantes trabalhavam nos andares mais altos e chegavam bem mais tarde (e saiam bem mais cedo), os funcionários mais inferiores trabalhavam nos primeiros andares, e chegavam mais ou menos na mesma hora que Antônio, mas não usavam o elevador, subiam de escada. Embora trabalhando há muitos anos ali, Antônio não mantinha um relacionamento mais intenso com nenhum funcionário. Isso se devia a sua personalidade, desde criança era muito ensimesmado, por vezes até desconfiado. Mas os poucos que tiveram a sorte de conhecê-lo a fundo, fizeram nele um bom amigo, fiel e companheiro. Nunca fora casado, uns namoricos aqui e ali na juventude e só.


Num dia que não parecia ter nada de diferente dos demais, exceto pelo fato de ter cortado o cabelo no dia anterior – o que fazia Antônio sentir-se particularmente de bem consigo mesmo – parou no térreo abriu a porta e disse:


– Sobe.


– 14, por favor. – e o pedido veio acompanhado de um perfume que lhe arrebatou a alma.


Levantou a cabeça, mas como a aba do quepe lhe diminuía o campo de visão só viu um belo par de pernas muito brancas e grossas, num vestido vermelho não tão justo mas o bastante para ver bem o desenho de quadris largos e meneantes. Ajeitou o quepe e viu seu rosto pela primeira vez, era uma dama de meia idade, morena e bela. Ela já tinha parado e se postado elegantemente, frente à porta mirando reto e segurando contra os seios fartos uma pequena bolsa de couro marrom. Já tinha visto várias mulheres interessantes nos seus anos como ascensorista, mas nada que se comparasse a ela.


Antônio seguiu a viagem, com três paradas até o décimo-quarto andar, com o corpo rijo, como se um líquido denso e gelado se espalhasse por cada vão de seu ventre, o coração palpitante e as mãos suando dentro das luvas brancas, encardidas e gastas pelo uso excessivo. Contudo a sensação era boa, como há tempos não experimentava. No décimo-quarto ela desceu sem dizer uma palavra, Antônio observou seu caminhar compassado até ela se perder à sua direita. Já chamavam o elevador embaixo, mas o ascensorista quedou ali alguns bons segundos, não pensando em nada e curtindo a sensação que a visão daquela mulher lhe propiciara.


Então, cada vez que chamavam o elevador Antônio esperava ansioso que fosse para o décimo-quarto andar. Não demorou muito, ela desceu poucos minutos depois, veio acompanhada de dois senhores de terno, só eles falavam, ela parecia desinteressada. Antônio não prestou atenção em uma palavra do que diziam, se concentrou na mulher que tinha o olhar parado em um ponto indefinido, o que dava a ela uma força que fazia tremer o corpo de Antônio. Saiu entre os dois homens, mais uma vez em silêncio.


O resto do dia Antônio passou avoado, por vezes lembrando do som caudaloso da voz da mulher, ora sentindo na sua mente o cheiro que lhe causava tão boa sensação. Ao fim do expediente Antônio F. seguiu para sua pequena casa num bairro antigo da capital, com sua roupa pouco adequada ao frio que começava a fazer, mas pouco importava, o caminho nunca lhe pareceu tão iluminado, tudo tinha uma cor diferente, se perdia observando as coisas ao redor e não teve tempo para sentir frio.


Deitado na cama de barriga para cima quis dormir e não conseguiu, queria sonhar com ela. Por fim conseguiu adormecer, mas ao despertar constatou não sem ressentimento que a mulher do 14 não tinha participado dos seus sonhos. Foi para o trabalho, esperançoso de voltar a vê-la. Tentava manter o sentimento do dia anterior, não foi tão fácil, a realidade fazia esvair sua plenitude. Neste dia não a viu, nem no seguinte, nem no outro. Diminuía em si o fogo ascendido por aquela singular dama. Não chegou a comentar com ninguém sobre o que passou, pensava que palavras não seriam fiéis, nem à mulher, nem a seu sentimento. Passou o fim de semana. E a vida de Antônio voltava aos poucos ao seu ritmo monótono costumeiro.


Foi na outra quarta-feira, distraído no seu banquinho, a esperar no térreo, de portas abertas, que alguém quisesse subir, que Antônio a viu no começo do hall. Vestia agora azul, mas não restava dúvida, era ela. Desta vez Antônio sentiu primeiro o perfume, que bastou para acionar toda complexa gama de sentimentos que procurou retomar por toda a semana.


– 14, por favor. – e sua voz parecia ainda mais bela e envolvente.


Desta vez subiram sozinhos, sem fazer paradas nos andares intermediários, Antônio passou todo o tempo olhando intermitentemente para ela, de soslaio, e pensava em algo que poderia lhe dizer. “Frio hoje, hem?”, “O prédio está vazio hoje, não é verdade?”, “Que belo jogo o de ontem, não achou?”, “Esperei por você a semana inteira, pensei que não fosse mais voltar.”, “A senhora é a mulher mais bela que já vi em toda minha vida.” O elevador parou no 14. Ela se aproximara da porta, tinha o nariz adunco a menos de um palmo da estrutura metálica que súbito se abriu, foi dando um passo para sair e Antônio disse em voz tímida, mas doce:


– Boa tarde.


Respondeu em movimento com um aceno de cabeça e um “Boa ta…” que se perdeu no corredor. Para Antônio foi satisfatório, se sentia bem. Na saída ela pela primeira vez agradeceu, um “obrigada” simples e amável, que deixava no ar seu perfume inigualável. E esta passou a ser a rotina, toda quarta-feira entrava, pedia o 14, saia, dizia obrigada. E Antônio se rejubilava a cada semana. Passou a esperar este dia como uma criança que espera o Natal e seus presentes. Tornou-se vaidoso como nunca antes, cuidava sempre dos cabelos, a barba jamais estava por fazer, passou a usar um perfume que de muito caro não podia esbanjar. Então só se perfumava às quartas, para ela, cujo nome nunca foi capaz de descobrir. Era melhor assim, afinal de contas já lhe tinha dado um nome, que julgava mais adequado que qualquer outro registro oficial. Quando pensava nela, pensava em Regina.


Foi assim semana após semana. Certa vez Antônio programou sua pausa da tarde para coincidir com a saída de Regina, para assim poder segui-la. Deixou-a no décimo-quarto, desceu e em vez de tomar seu café com pão, se plantou na porta do edifício esperando que ela passasse. Esperou os quinze minutos que lhe cabiam de intervalo, e depois mais cinco, e teve de voltar, ao chamado do zelador que o substituía na operação do elevador e já estava impaciente com aquele serviço tão metódico. Não voltou a tentar, decidiu que devia preservar Regina naquele mundo específico, qualquer informação exterior destruiria o castelo que havia erguido. Com Regina, Antônio se tornou um homem melhor se abriu mais para o contato humano, rejuvenesceu.


Uma noite sonhou, que ao subir com ela o elevador parava por causa de uma pane qualquer. Ali naquela clausura forçada, se descobriam almas gêmeas, tinham afinidades diversas, prazeres em comum, descontentamentos parelhos. Conversaram sobre tudo, riam juntos gargalhadas de amor. Acordou empapado de suor e não pregou os olhos o resto da noite.


Passou-se não mais que três meses. Quando foi a primeira quarta-feira de agosto Regina não apareceu. Antônio pensou que estivesse doente ou que alguma coisa qualquer houvesse ocorrido, um parente enfermo, um compromisso fora da cidade. Mas ela não voltou em nenhuma quarta-feira mais, nem em nenhum outro dia. Antônio manteve as esperanças por um mês, depois caiu na real, qualquer que fosse o affaire que a trouxera ao departamento, o havia resolvido, estava livre, não precisaria nunca mais voltar àquele prédio velho e frio. Por vezes, ao ouvir o pedido “14, por favor.”, Antônio pensava consigo “Meu Deus é ela.”, mas rapidamente se apagava a ilusão.


Muito tempo depois, avançado em anos, Antônio F. pescando em frente ao seu rancho sentiu o perfume de Regina, olhou ao redor, mas não passava de uma flor singular que desabrochava no barranco à beira do rio. Sorriu.



Leonardo de Oliveira Cunha (pastiche de Italo Calvino), junho de 2006

FALA

Eu não sei dizer nada por dizer
Então eu escuto
Se você disser
tudo o que quiser
Então eu escuto
Fala
Se eu não entender, não vou responder
Então eu escuto
Eu só vou falar na hora de falar
Então eu escuto
Fala

23 novembro, 2006

07 novembro, 2006

A tecnologia em prol da nostalgia

A volta ao mundo em 80 dias

Abertura de um desenho que pouca gente viu. Pena que a música não está em português... quem se lembra? "São 80 dias, são, 80 nada mais para dar a volta ao mundo ..."